Por
Joelson Santiago Santos
A literatura, em suas performances, (re)inventa histórias,
realidades e conceitos. A acepção de
amor é uma dos motes preferenciais de diversos textos literários e matéria de
composição de vários artistas. O escritor pernambucano Marcelino Freire
(1967-), na coletânea de contos Rassif:
mar que arrebenta, 2008, mais especificamente no conto “Amor Cristão”
delineia uma definição de amor avessa, inversa, paradoxal, periférica às
recorrentes significações registradas no universo das letras e das artes.
A partir dessa perspectiva da
narrativa de Freire, pretende-se nesse trabalho apresentar uma leitura do conto
“Amor Cristão”, buscando explorar o (im)pacto dos sentidos propostos no texto e
perscrutando as inter-relações com outros textos e/ou conceitos sobre o amor
sugeridos nessa narrativa de Marcelino Freire.
O escritor pernambucano de
Sertânia e residente em São Paulo, desde o início da década de 1990, apresenta
no seu repertório de produção literária um leque de narrativas que deslindam gays,
travestis, atores, michês, dramaturgos, meninos (afeminados, abusados, poetas),
sertanejos. Um elenco de personagens que transitam em cenários urbanos que apresenta,
ora capital pernambucana, ora a grande São Paulo num recorte temático peculiar
aos sujeitos socialmente colocados à margem e aos espaços periféricos.
Na coletânea de narrativas
poéticas, Rassif: mar que arrebenta,
2008, o escritor pernambucano já sugere a partir da aliteração presente no
título o tom cortante das histórias, assim como a força da metáfora do mar
revolto consiste num prenuncio dos cenários tensos, instáveis e de violência
presentes nas narrativas. Mesmo diante do registro de cenas impactantes ou de
seres ultrajados, sempre há a ironia o humor conferindo uma leveza ao texto e
aprofundando a crítica e a reflexão.
“Amor Cristão” é a narrativa
da coletânea, a qual exemplifica uma constante na obra do escritor, a busca por
conceitos que contrapõem o senso-comum e reflexões sobre o viver de sujeitos
socialmente desprestigiados. Neste texto de Marcelino Freire, o amor é
construído por comparações inusitadas, mais especificamente antíteses dos
conceitos de amor carregados nas tintas românticas ou de salvação cristã. Em
Freire, o amor é configurado com violência, força incontrolável, impiedoso,
mortal, perdição e destruição, incialmente uma antípoda ao título da narrativa:
“Amor Cristão”.
O texto é uma narrativa
curta, na qual cada parágrafo introduz a definição de um amor outro. Nas
palavras do autor: “Amor é a mordida de um cachorro pitbull que levou a coxa da Laurinha e a bochecha do Felipe. Amor
que não larga. Na raça. Amor que pesa uma tonelada. Amor que deixa. Como todo
grande amor. A sua marca” (FREIRE, 2008, p. 77).
No trecho acima o amor é apresentado
como um sentimento bruto, denso e irracional. O amor é posto como um golpe
violento que dilacera a carne impiedosamente e deixa sua marca, como o
aprisionamento de Sísifo em sua missão infinda, na qual é impossível se libertar
do fado pesado e doloroso. Com essas metáforas, o leitor depara-se, desde as
primeiras frases da narrativa de Freire, com uma proposta de desconstrução da
leveza, mansidão e consolo intrínseca na acepção cristã do amor.
Além do contrapondo da ideia
de amor cristão, o texto sugere, por meio da ambiguidade e intertextualidade, múltiplas
possibilidades de expressão do sentimento amoroso, como é descrito pelo
narrador: “Amor é o tiro que deram no peito do filho da dona Madalena. E o
peito do menino ficou parecendo uma flor. Até a polícia chegar e levar tudo
embora. Demorou. Amor que mata. Amor que não tem pena” (FREIRE, 2008, p. 77).
Amor se configura aqui pela
dor, pela morte, pela crueldade e/ou pela vingança. O diálogo intertextual da
figura de Dona Madalena com a personagem homônima a dos evangelhos bíblicos
ilustra como a dor pode ser expressão do amor. Dona Madalena certamente chora e
sofre ao ter ciência da morte do filho por um tiro a queima roupas, assim como
a Madalena bíblica chora a morte de Jesus ao pé da cruz. Em ambos os casos, o
do filho de dona Madalena e o de Jesus, os corpos dos mortos ficam expostos ao
público demoradamente até os devidos encaminhamentos do sepultamento.
O trecho ainda é finalizado
com um aforismo provocador: “Amor que mata. Amor que não tem pena”. Nessa
perspectiva, temos uma linha tênue entre amor e ódio, movida, talvez, pelo
desejo de vingança. Essa afirmativa deixa-nos o seguinte questionamento: o
filho de Dona Madalena foi morto por amor, por vingança, por justiça? O
narrador não apresenta respostas, mas imprime sua conclusão diante do que foi
apresentado: “o amor não tem pena, ele mata”.
Nesta narrativa de Marcelino,
as flores não se limitam a metáforas de beleza, de encantamento ou de vida, nem
são imagens que adornam os cenários com suas cores e cheiros. No texto, essa
imagem é retomada para dimensionar a perfuração no peito do filho de Dona
Madalena. Para o narrador, esconder uma arma num buquê de rosas para oferecer
ao primeiro “sacana” que aparecer é também uma expressão do amor.
Pelo ritmo acelerado,
composto por uma sequência de períodos curto e, por vezes, polissêmicos, o
narrador em primeira pessoa revela-se um sujeito à margem, que se utiliza do
universo da periferia, assim como das suas experiências, para deslindar um
conceito de amor por meio de uma espécie de lista de definições. Tal atitude do
narrador, constitui também, a meu ver, uma metáfora da busca do poeta, ou da
própria literatura em (re)inventar realidades, em consagrar instantes ou ampliar
percepções particulares numa experiência universal, como a pequena Itabira de
Carlos Drummond de Andrade, o sertão mineiro de Guimarães Rosa, ou o Capão
Redondo de Ferrez.
É partir das experiências do narrador que
vamos compondo, ou melhor, recompondo o conceito de amor sob novas óticas,
sempre de forma irônica como no trecho: “Amor é o que passa na televisão. Bomba
no Iraque. Discussão de reconstrução. Pois é. Só o amor constrói. Edifícios.
Condomínios fechados. E bancos” (FREIRE, 2008, p.78). O narrador lembra-nos que
as construções em nome do amor são diversas, tantas que até mesmo se
contradizem, uma bomba no Iraque, por exemplo, pode ser paradoxalmente lançada
com muito amor, pois muitas vezes consiste numa ação em nome de uma ideologia
que direciona e fundamenta a existência de um ser.
O texto conclui suas
assertivas retomando princípios que configuram o amor cristão como liberdade,
salvação, doação incondicional para problematizá-los, propondo ao leitor
(re)pensar o próprio ensinamento cristão sobre amor, lembrando-nos que Jesus
Cristo na sagradas escritoras figura o exemplo máximo do amor de Deus à
humanidade, pois Cristo é o cordeiro de Deus imolado para salvação do mundo, como
é registrado no texto: “Cristo mesmo quem nos ensinou. Se não houver sangue.
Meu filho. Não é amor” (FREIRE, 2008, p. 78).
Assim o sacrifício como
prova de doação, o sangue como prova de alianças, Marcelino Freire nos sugere
que amor e salvação é um sentido atravessa acepção de amor cristão, que em contextos
distintos, é tomado de diversas formas.
REFERÊNCIA
FREIRE, Marcelino. Rasif - Mar que arrebenta. Rio de Janeiro: Record, 2008.
REFERÊNCIA
FREIRE, Marcelino. Rasif - Mar que arrebenta. Rio de Janeiro: Record, 2008.
Nenhum comentário:
Postar um comentário