segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Um (Im)Pacto de amor: Uma leitura do conto “Amor Cristão” de Marcelino Freire


Por
Joelson Santiago Santos 


A literatura, em suas performances, (re)inventa histórias, realidades e conceitos.  A acepção de amor é uma dos motes preferenciais de diversos textos literários e matéria de composição de vários artistas. O escritor pernambucano Marcelino Freire (1967-), na coletânea de contos Rassif: mar que arrebenta, 2008, mais especificamente no conto “Amor Cristão” delineia uma definição de amor avessa, inversa, paradoxal, periférica às recorrentes significações registradas no universo das letras e das artes.
A partir dessa perspectiva da narrativa de Freire, pretende-se nesse trabalho apresentar uma leitura do conto “Amor Cristão”, buscando explorar o (im)pacto dos sentidos propostos no texto e perscrutando as inter-relações com outros textos e/ou conceitos sobre o amor sugeridos nessa narrativa de Marcelino Freire. 
O escritor pernambucano de Sertânia e residente em São Paulo, desde o início da década de 1990, apresenta no seu repertório de produção literária um leque de narrativas que deslindam gays, travestis, atores, michês, dramaturgos, meninos (afeminados, abusados, poetas), sertanejos. Um elenco de personagens que transitam em cenários urbanos que apresenta, ora capital pernambucana, ora a grande São Paulo num recorte temático peculiar aos sujeitos socialmente colocados à margem e aos espaços periféricos.   
Na coletânea de narrativas poéticas, Rassif: mar que arrebenta, 2008, o escritor pernambucano já sugere a partir da aliteração presente no título o tom cortante das histórias, assim como a força da metáfora do mar revolto consiste num prenuncio dos cenários tensos, instáveis e de violência presentes nas narrativas. Mesmo diante do registro de cenas impactantes ou de seres ultrajados, sempre há a ironia o humor conferindo uma leveza ao texto e aprofundando a crítica e a reflexão.
“Amor Cristão” é a narrativa da coletânea, a qual exemplifica uma constante na obra do escritor, a busca por conceitos que contrapõem o senso-comum e reflexões sobre o viver de sujeitos socialmente desprestigiados. Neste texto de Marcelino Freire, o amor é construído por comparações inusitadas, mais especificamente antíteses dos conceitos de amor carregados nas tintas românticas ou de salvação cristã. Em Freire, o amor é configurado com violência, força incontrolável, impiedoso, mortal, perdição e destruição, incialmente uma antípoda ao título da narrativa: “Amor Cristão”.
O texto é uma narrativa curta, na qual cada parágrafo introduz a definição de um amor outro. Nas palavras do autor: “Amor é a mordida de um cachorro pitbull que levou a coxa da Laurinha e a bochecha do Felipe. Amor que não larga. Na raça. Amor que pesa uma tonelada. Amor que deixa. Como todo grande amor. A sua marca” (FREIRE, 2008, p. 77).
No trecho acima o amor é apresentado como um sentimento bruto, denso e irracional. O amor é posto como um golpe violento que dilacera a carne impiedosamente e deixa sua marca, como o aprisionamento de Sísifo em sua missão infinda, na qual é impossível se libertar do fado pesado e doloroso. Com essas metáforas, o leitor depara-se, desde as primeiras frases da narrativa de Freire, com uma proposta de desconstrução da leveza, mansidão e consolo intrínseca na acepção cristã do amor.
Além do contrapondo da ideia de amor cristão, o texto sugere, por meio da ambiguidade e intertextualidade, múltiplas possibilidades de expressão do sentimento amoroso, como é descrito pelo narrador: “Amor é o tiro que deram no peito do filho da dona Madalena. E o peito do menino ficou parecendo uma flor. Até a polícia chegar e levar tudo embora. Demorou. Amor que mata. Amor que não tem pena” (FREIRE, 2008, p. 77).
Amor se configura aqui pela dor, pela morte, pela crueldade e/ou pela vingança. O diálogo intertextual da figura de Dona Madalena com a personagem homônima a dos evangelhos bíblicos ilustra como a dor pode ser expressão do amor. Dona Madalena certamente chora e sofre ao ter ciência da morte do filho por um tiro a queima roupas, assim como a Madalena bíblica chora a morte de Jesus ao pé da cruz. Em ambos os casos, o do filho de dona Madalena e o de Jesus, os corpos dos mortos ficam expostos ao público demoradamente até os devidos encaminhamentos do sepultamento.
O trecho ainda é finalizado com um aforismo provocador: “Amor que mata. Amor que não tem pena”. Nessa perspectiva, temos uma linha tênue entre amor e ódio, movida, talvez, pelo desejo de vingança. Essa afirmativa deixa-nos o seguinte questionamento: o filho de Dona Madalena foi morto por amor, por vingança, por justiça? O narrador não apresenta respostas, mas imprime sua conclusão diante do que foi apresentado: “o amor não tem pena, ele mata”.
Nesta narrativa de Marcelino, as flores não se limitam a metáforas de beleza, de encantamento ou de vida, nem são imagens que adornam os cenários com suas cores e cheiros. No texto, essa imagem é retomada para dimensionar a perfuração no peito do filho de Dona Madalena. Para o narrador, esconder uma arma num buquê de rosas para oferecer ao primeiro “sacana” que aparecer é também uma expressão do amor.
Pelo ritmo acelerado, composto por uma sequência de períodos curto e, por vezes, polissêmicos, o narrador em primeira pessoa revela-se um sujeito à margem, que se utiliza do universo da periferia, assim como das suas experiências, para deslindar um conceito de amor por meio de uma espécie de lista de definições. Tal atitude do narrador, constitui também, a meu ver, uma metáfora da busca do poeta, ou da própria literatura em (re)inventar realidades, em consagrar instantes ou ampliar percepções particulares numa experiência universal, como a pequena Itabira de Carlos Drummond de Andrade, o sertão mineiro de Guimarães Rosa, ou o Capão Redondo de Ferrez.
 É partir das experiências do narrador que vamos compondo, ou melhor, recompondo o conceito de amor sob novas óticas, sempre de forma irônica como no trecho: “Amor é o que passa na televisão. Bomba no Iraque. Discussão de reconstrução. Pois é. Só o amor constrói. Edifícios. Condomínios fechados. E bancos” (FREIRE, 2008, p.78). O narrador lembra-nos que as construções em nome do amor são diversas, tantas que até mesmo se contradizem, uma bomba no Iraque, por exemplo, pode ser paradoxalmente lançada com muito amor, pois muitas vezes consiste numa ação em nome de uma ideologia que direciona e fundamenta a existência de um ser.
O texto conclui suas assertivas retomando princípios que configuram o amor cristão como liberdade, salvação, doação incondicional para problematizá-los, propondo ao leitor (re)pensar o próprio ensinamento cristão sobre amor, lembrando-nos que Jesus Cristo na sagradas escritoras figura o exemplo máximo do amor de Deus à humanidade, pois Cristo é o cordeiro de Deus imolado para salvação do mundo, como é registrado no texto: “Cristo mesmo quem nos ensinou. Se não houver sangue. Meu filho. Não é amor” (FREIRE, 2008, p. 78).
Assim o sacrifício como prova de doação, o sangue como prova de alianças, Marcelino Freire nos sugere que amor e salvação é um sentido atravessa acepção de amor cristão, que em contextos distintos, é tomado de diversas formas.
                                         
                                                     REFERÊNCIA

FREIRE, Marcelino. Rasif - Mar que arrebenta. Rio de Janeiro: Record, 2008.




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