segunda-feira, 18 de março de 2019

Um rolé no Pelô: O Narrador no conto Cisco, de Fábio Mandingo




Por Joelson Santiago Santos[1]

O narrador do conto Cisco, de Fábio Mandingo, na coletânea Salvador negro rancor (2014), apresenta a perspicácia de um observador experiente, crítico-minimalista que fotografa cenários, personagens e cenas de uma Salvador contemporânea, sem adornos, sem rótulos ou sem o romantismo amadiano. Ao perscrutar o texto de Mandigo, encontra-se uma cidade vista e vivenciada por um narrador que transita um universo esquecido, omitido ou pouco representado em nossas letras, mas real no cotidiano da população negra, pobre e periférica da cidade da Bahia.


O conto de abertura da coletânea de Fábio Mandingo, Cisco, apresenta uma trama fomentada pela cultura e dinâmica das ruas soteropolitanas, numa encruzilhada de vozes que permitem ao leitor transitar a narrativa que apresenta o cruzamento entre o saber acadêmico e o conhecimento empírico construído pelas vivências da periferia soteropolitana. 

A alusão ao grupo paulistano de rap, DMN, aponta para as influências culturais do escritor, alinhando-se aos escritores de Literatura periférica, que, por meio do HIP HOP, especialmente do elemento RAP, apoderam-se da palavra e se dão conta do quanto a poesia nas quebradas se faz legítima, importante, vigorosa e potente. 


O DMN é um grupo musical que desponta no cenário do rap nacional no final da década de 1980. Os rappers desse grupo paulistano tematizam, em suas composições, dilemas da juventude negra e periférica do país, tais como o racismo, a vulnerabilidade social dos jovens negros, bem como a resistência e as lutas diárias do povo da periferia. 


O título do conto de Fábio Mandingo, Cisco, já é um indicativo do que encontraremos no texto de Mandingo. Cisco é homônimo ao nome de uma das composições musicais desses rappers paulistas. Ambos os textos trazem à baila personagens impactados e/ou tragados pela exclusão social. Nos versos do DMN, conhecemos Cisco, um garoto do gueto, que, enquanto cresce, tem suas possibilidades sociais tolhidas por conta de fatores como: a falta de acesso à educação; a pobreza extrema; “a mira da polícia”; enfim uma realidade dura que limita a liberdade e destrói vidas de negros no país e não é relatada nos grandes veículos de comunicação.


Esse personagem que espelha a realidade de muitos jovens negros leva um nome carregado de sentidos, uma metáfora que traduz, paralelamente, a relevância que a sociedade confere à população negra, periférica ou em situação de rua, assim como representa o incômodo que essa comunidade provoca em diversos segmentos da nossa sociedade (ricos, polícia, governo). A expressão “cisco” remete a pó de carvão, a lixo, a partícula, ao desprezível, como também se refere a um conjunto de aparas miúdas, a um corpúsculo que entra no olho acidentalmente, promovendo incômodos, mal-estar, irritação.

De certa forma, “os ciscos” que transitam nas ruas sem morada fixa coadunam esses significados para grande parte da sociedade. Na literatura de Fábio Mandingo, outro [ou o mesmo] Cisco [re]aparece em sua narrativa, a partir da inserção do discurso direto livre dos personagens acompanhados da observação/descrição de um narrador-testemunha muito consciente do processo histórico que formatou e formata a cidade contemporânea de Salvador.

No conto de Mandigo, dois jovens que habitam o Pelourinho dialogam sobre suas peripécias para conseguir dinheiro para o consumo de drogas daquele dia. Por meio dessa conversa, o leitor flagra um pouco do cotidiano daqueles sujeitos tragados por uma mazela social – o crack – que, não por acaso, segundo o narrador, atinge os mais vulneráveis socialmente: mendigos, pobres, moradores de ruas etc.

A fala dos personagens traz a tensão, a força e a dinâmica da linguagem das ruas, da periferia, do povo. É por meio de diálogos como estes que o leitor (re)conhece uma Salvador de injustiças, cruel, cheia de ódio, rancor e descaso com os seus. A conversa entre dois jovens, que aparentemente são menores de idade, revela-nos, em cada trecho, uma juventude perdida na luta por uma subsistência limitada ao consumo de entorpecentes, à violência e às execuções sumárias.

O primeiro diálogo do conto apresenta uma tentativa frustrada dos jovens conseguirem algo com uma “gringa”, como fica evidente no trecho:



― Porra pivete, cê num abraçou minha ideia! A gringa já tava na minha fita, ia dar na mão de boa!
― Dá na mão porra nenhuma pivete, aqui tá cheio de X9, vacilão. O rasta do bar ali: X9, o vigia da loja X9, se vacilar até você é X9!
― Cê tinha abraçado minha ideia pivete, e me falseou na hora do crime, se vacilar outra vez eu vou te fulerar, de menor... (MANDINGO, 2011, p. 09).


A leitura do trecho aponta para a cadência e musicalidade do rap, confirmando as influências poéticas e políticas do autor. Num ritmo sincopado, o fragmento apresenta um dos garotos versando, de forma emblemática, como as pessoas no seu entorno estão disponíveis e preparadas para prejudicá-los a qualquer momento, doravante o personagem deixe claro quem são seus potenciais inimigos na rua.

Entre os recursos de sobrevivência desses jovens, inclui-se a mendicância, furtos ou até “favores”, em especial, aos turistas estrangeiros. Para isso, os meninos recorrem a um vocabulário criativo de palavras vindas das principais nacionalidades que incrementam o turismo no Pelourinho, mas muito eficaz para estabelecer a comunicação.

Na narrativa, destaca-se a presença de um narrador que intercala as ações dos personagens com observações que não apenas fotografam uma cena, mas, sobretudo, colocam em elevo a idiossincrasia do locus de quem apresenta a narrativa. Barthes (2007 [1966]) dizia que o escritor é um indivíduo que fala no lugar do outro no texto literário. Em Fábio Mandingo, é o “Outro” que fala de si mesmo, a partir de suas experiências ou, mais especificamente, como defende o autor de Salvador negro rancor, uma perspectiva afropopular:



Eu costumo dizer que a Bahia extrapola todos os estereótipos. Todos os estereótipos construídos sobre Salvador são extremamente reais, intensamente verdadeiros, muito mais do que se pode imaginar de longe, ou a partir de uma visão de fora. Eu acho que a mudança no que eu escrevo é justamente do Lugar de onde parte a VISÃO, que é um lugar totalmente diferenciado da classe que tradicionalmente se ocupou de escrever, pesquisar, cantar e retratar Salvador. É uma escrita que parte do povo, de uma perspectiva afropopular e que, portanto se distancia e entra em choque com a perspectiva tradicional que busca conquistar conforto em relação ao perigo do que é essa “baianidade”. Essa “baianidade”, que é o modo afrobaiano de viver a vida, é extremamente perigoso pra as pretensões normativas da elite. Por isso, foi feito um esforço tremendo por essa elite, na busca de enquadrar, acomodar, domesticar e simplificar essa realidade (MANDINGO, 2011, online)[2].

Segundo Walter Benjamin (1994), a importância do narrador reside no intercâmbio de experiências. Ainda segundo o autor alemão, essa experiência, que passa de pessoa a pessoa, presente em todos os narradores, possui um senso prático, que consiste seja num sentimento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida. 

Corroborando com essa ideia, o narrador no conto Cisco apresenta ao leitor um recorte cultural da capital baiana, um modo de vida apresentado sob uma ótica distinta das imagens de “baianidade” consagradas pelos artistas aristocratas, intelectuais e escritores acadêmicos. Em Fábio Mandingo, o sujeito em cena é representado por sua própria voz, por intermédio de um narrador que transita, vive e pensa dentro da realidade representada.

A questão da representação literária é matéria problematizada por Regina Dalcastagnè (2012), pois, em sua ótica, em nossa literatura, existem personagens e contextos marcados por preconceitos e estereótipos que limitam ou subestimam a representatividade de determinados grupos étnicos e/ou sociais. 

O silêncio dos marginalizados é coberto por vozes que se sobrepõem a eles, vozes que buscam falar em nome deles, mas também, por vezes, é quebrado pela produção literária de seus próprios integrantes. Mesmo no último caso, tensões significativas se estabelecem: entre a “autenticidade” do depoimento e a legitimidade (socialmente construída) da obra de arte literária, entre a voz autoral e a representatividade de democratização da produção artística (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 19, grifos da autora).

Voz autoral, representatividade e legitimidade são elementos de composição de um mesmo conjunto, mas nem sempre compõe uma unidade. Tantos os representados na literatura, quantos os representantes da literatura se distanciam de várias realidades da sociedade brasileira. O campo literário do nosso país configura-se homogêneo, delineando um perfil que indica a predominância de escritores do sexo masculino, brancos, classe média, oriundos do eixo Rio e São Paulo e de profissões relacionadas a espaços privilegiados de poder e de produção de discurso: como os meios jornalístico e universitário, por exemplo. 

Em relação aos representados na literatura, a constatação da pesquisadora não é muito diferente: os personagens masculinos brancos são, em maioria, representados numa posição social de prestígio como artista, jornalista, universitário; os negros, como contraventores; e as mulheres são limitadas, ainda, ao espaço doméstico ou reificadas, sendo donas de casa ou prostitutas.

Ainda de acordo com a pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB), esse cenário não representa o conjunto das perspectivas sociais contemporâneas do Brasil. Todavia, em nossa narrativa atual, é marcante a ausência de representantes das classes mais populares.

A questão da representação literária congrega posicionamentos diversos. Para alguns estudiosos, a literatura não tem (e nunca teve) preocupação primordial com a realidade, embora apareça de forma intrínseca, seja quando negada, distorcida ou idealizada, sempre sob uma apresentação limitada por uma perspectiva. Para outros, no entanto, o escritor pode inserir conscientemente (ou não) fragmentos da realidade no seu texto ficcional ou até mesmo imprimir, em sua escritura, uma intenção de registrar sua realidade. 


Outra questão levantada sobre representação literária se refere a quem é o enunciador do discurso e de que lugar é construído essa fala. Na literatura de Fábio Mandingo, nota-se uma busca estética e política de (re)pensar os processos histórico-culturais de sua realidade social. Dessa forma, o escritor traz a cena a imagem e a voz de grupos deixados à margem da literatura ou representados pela ótica do exotismo. Assim, nós deparamos com mendigos, loucos, moradores de ruas, dependentes químicos, negros que transitam em contundentes narrativas que (re)velam afrovivências, caracterizadas pelas lutas diárias.

Para Mandingo, literatura é experiência e, nessa pegada, o escritor deslinda em sua narrativa o que vivenciou e aprendeu na realidade das ruas soteropolitanas, sem devaneios turísticos e fantasias românticas. O conto Cisco introduz a trama com um fragmento aparentemente deslocado da narrativa, mas muito preciso na forma e conteúdo. Nesse trecho, o leitor é conduzido a uma Salvador que destoa do imaginário turístico e se depara com a dureza de uma realidade atual: 

Diz que a química brota como flores inversas, calcificando os alvéolos e diminuindo o espaço da respiração. Explosões de amônia, bombas de éter, soda cáustica, os pulmões endurecidos já não inflam nem se contraem e por isso são como esqueletos asmáticos, em crônicas crises de falta de ar (MANDINGO, 2014, p. 09).


O texto traz uma explicação, utilizando uma linguagem científica sobre as reações interna e física do corpo à química, mas também nos remete uma reflexão de como “os ciscos” (os indesejados) que o próprio sistema constrói vão se constituindo. Destaca-se o processo lento (quase uma tortura chinesa) que envolve o silenciamento dos sujeitos, e este leva a uma asfixia social que parece individual, mas é coletiva, pois atinge de forma sistematizada a um grupo social.

A imagem é fundamental, por duas razões: primeiro, pela poeticidade, pela metáfora que nos conduz a uma reflexão mais profunda; segundo, pela marca estética do escritor em suas narrativas. Mandingo aproveita da sua vasta formação e leituras (de história, geografia, política, ciência – o que chamamos de conhecimento enciclopédico) para introduzir o leitor sorrateiramente no texto, antecipando-o, sem o revelar.

As cenas apresentadas pela voz do narrador, em Fábio Mandingo, são analisadas paralelamente aos fatos vivenciados pelos personagens, como fica evidenciado no trecho:

A periferia tem um ódio estranho dos seus entes mais vulneráveis: loucos, mendigos, homossexuais, moradores de rua, viciados. São vítimas preferenciais desse sadismo urbano, que se compraz em pisar a cabeça do que anda ainda mais fodido que a maioria. Há um sadismo latente em se fazer turismo em países cheios de miseráveis (MANDINGO, 2014, p. 10-11).

A reflexão narrada produz um tom crítico na trama, apontando também para a visão empírica do narrador que percorre muito bem o universo das ruas de Salvador, reconhecendo, no presente da cidade, as marcas que o passado deixou. Complementarmente, a consciência do processo histórico do escritor é evidente nas inserções do narrador, como evidencia o trecho que descreve uma espécie de configuração cultural do Pelourinho:

Tentou-se de tudo por aqui: nos anos setenta os cortições escondidos nos prédios históricos tocavam Amado Batista e Waldick Soriano enquanto seus moradores injetavam xarope pra tosse na veia, pra ficarem loucos. Vieram os oitenta, os gringos abriam bares absurdos carregados de exotismo junk, e encheram as ruas de cocaína, cara e pura. Os degraus das escadas ainda rangiam como porcas estupradas, trepava-se e cagava-se nos corredores e as putas seminuas faziam filas nos banheiros coletivos às sete da manhã. As crianças misturavam clorofórmio com essência de frutas e se drogavam com a famosa loló, enquanto ratazanas enormes devoravam as orelhas e os narizes dos recém-nascidos (MANDINGO, 2014, p. 11).

A narrativa, ao mesmo tempo em que descreve uma ação no presente, consegue resgatar sentidos e origem histórica dos acontecimentos. Nesse passeio literário pelo Pelourinho, os pontos em destaque não são os turísticos, mas as pessoas que são invisibilizadas daquele lugar, esquecidas no seu presente e, muitas vezes, ignorantes de seu passado, situação que incomoda o narrador: “Eles [os jovens viciados] nem lembravam. Na ladeira da praça, os pretos Muçulmanos tentaram uma rebelião há séculos atrás” (MANDINGO, 2014, p. 13).


A consciência histórica sobre as mais diversas formas de preconceitos está presente no texto. Na alusão feita à Revolta dos Malês, um episódio resultante da discriminação étnica e religiosa contra o povo preto e muçulmano no estado da Bahia, o narrador registra sua inquietação com o esquecimento (ou ignorância) da história dos negros no Brasil e retoma um marco histórico, que não obteve sucesso, mas abalou as elites baianas, fomentando a possibilidade de uma revolta geral dos escravizados. 

Assim, o narrador de Fabio Mandingo conduz o leitor ao Pelourinho numa ótica de afrovivências, abusada em suas observações e repleta de inquietações e provocações. Esse rolé pelas ladeiras do centro histórico da cidade de Salvador, por meio da literatura de Mandingo, configura-se como uma espécie de cartografia social, uma leitura da periferia soteropolitana contundente e pertinente diante da realidade cruel de grande parte da população das quebradas. 


Notas:

[1] Mestre em Estudos de Linguagens pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB, professor da rede pública de ensino. E-mail: j.santhiago@hotmail.com


[2] Entrevista concedida ao escritor Nelson Maca, publicada no blog Gramática da Ira. Disponível em . Acesso em: 20 de fev 2015.

[3] Texto publicado na revista Vozes da Periferia do GELPs (Grupo de Estudos Literatura e Periferias(s)


REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. Crítica e verdade. Tradução: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2007 [1966].


BENJAMIN. Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN. Walter. Magia e técnica, arte e política: obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994.


DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. Vinhedo: Editora Novo Horizonte/ Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2012.


MANDINGO, Fabio. Salvador negro rancor. São Paulo: Ciclo Contínuo, 2011.







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